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Nexo Jornal: ‘Uma saída honrosa’: a derrota francesa na Guerra da Indochina

O Nexo publicou um trecho de ‘Uma saída honrosa’ de Éric Vuillard. O autor narra episódios da Primeira Guerra da Indochina, em que as forças coloniais francesas foram derrotadas pelo Vietnã. Os leitores do Nexo podem ler o texto selecionado na íntegra no site. Abaixo está um fragmento da publicação original:

Em 25 de junho de 1928, ao nascer do dia, três figuras austeras deixavam Saigon para uma pequena viagem. Um fio de bruma se estendia sobre as construções. O carro rodava a toda a velocidade. Apesar de a capota já estar erguida, o ar ainda era fresco, e o viajante da frente logo se enrolou em uma manta. Mas, na realidade, Tholance, Delamarre e o secretário de ambos estavam longe de ser viajantes comuns: formavam o embrião de uma nova administração colonial, eram os primeiríssimos inspetores do trabalho nomeados na Indochina francesa. Suspeitas de maus-tratos em uma plantação da Michelin tinham feito muito barulho depois de uma revolta dos trabalhadores, e os inspetores receberam a função de fiscalizar o respeito às poucas regras que faziam as vezes de código trabalhista e que supostamente protegeriam o coolie vietnamita. Em pouco tempo, o carro trocou os bairros da cidade pelas fileiras de casebres. A paisagem era tão bonita, de um verde quase agressivo, o rio transbordava de seu leito, e atrás de uma faixa estreita de terra se adivinhava uma profusão de terrenos espelhados de água.
Enfim, o caminho se embrenhou na floresta, e os viajantes experimentaram, ao mesmo tempo, uma espécie de encantamento e uma angústia indizível. Dos dois lados da estrada, era um desfile imóvel e implacavelmente repetido. Afundava-se em uma floresta imensa. Mas não era uma floresta como as outras, não era nem uma floresta tropical, densa ou selvagem, nem a espessa floresta dos sonhos, a floresta obscura onde as crianças se perdem; era uma floresta ainda mais estranha, talvez mais selvagem, mais obscura. À sua entrada o viajante se arrepia. Parece que nessa floresta, por um curioso sortilégio, todas as árvores crescem exatamente à mesma distância umas das outras. Uma árvore, depois outra árvore, sempre a mesma, e uma outra, e ainda uma outra, como se a floresta fosse composta de apenas um só e único espécime multiplicando-se ao infinito.
À noite, nas horas frias, os homens andam regularmente de árvore em árvore. Carregam uma faquinha. Em cinco segundos, dão alguns pobres passos, abaixam-se, levantam-se e deixam um entalhe na casca da árvore. Isso lhes toma no máximo quinze segundos, e assim, mais ou menos a cada vinte segundos, o homem alcança outra árvore, e na fileira vizinha outro homem o segue, e por centenas e centenas de metros, centenas de homens, descalços, com roupas de algodão, avançam, com uma lanterna na mão e a faca na outra, e entalham a casca. Começa então um lento gotejar. Parece leite. Mas não é leite, é látex. E a cada noite, cada homem sangra em torno de mil e oitocentas árvores, mil e oitocentas vezes o homem apoia a faca na casca, mil e oitocentas vezes ele traça seu entalhe, cortando uma fina lâmina de cerca de dois milímetros de espessura, mil e oitocentas vezes ele deve prestar atenção para não tocar o cerne da madeira. E enquanto nossos inspetores do trabalho atravessam de carro a interminável plantação, enquanto admiram a racionalidade da obra, o modo como Taylor e Michelin conseguiram afastar “a distração natural” do operário anamita graças a uma organização racional do trabalho, enquanto os inspetores admiram até que ponto essa floresta, a organização implacável dessa floresta, representa uma luta inaudita contra o tempo perdido, com o olhar atraído pela imensidade fria da obra, eles experimentam um tipo de pavor.
Mesmo o sistema mais bem-ordenado comporta falhas. E às nove horas da manhã, mais ou menos vinte quilômetros antes de sua chegada ao escritório da plantação, Émile Delamarre, inspetor do trabalho, viu três jovens tonquineses à beira da estrada. Teve a infelicidade de se inclinar, e viu que eles estavam ligados uns aos outros por um arame. Isso deve ter lhe parecido bizarro, incongruente, aqueles três homens descalços amarrados juntos, então ordenou ao motorista que parasse.
Os três homens estavam sujos, vestidos de farrapos, e iam sob a escolta de um capataz. Delamarre desceu um pouco cambaleante do carro, tropeçou no barro e caminhou com dificuldade até os prisioneiros. Uma vez junto a eles, olhou por um instante o capataz que, em vista do terno caro de Delamarre, tirou o chapéu. O tempo já se tornara quente e úmido. Delamarre constatou que os prisioneiros estavam cobertos de sarna. Em um relance, viu que o arame lhes feria cruelmente o pulso, e decidiu interrogá-los diretamente, em vietnamita. Depois de uma troca de palavras banais e algumas hesitações, um deles contou que tinha fugido. Era o que chamavam de um desertor: tinha deixado a plantação durante a noite, mas acabava de ser capturado. Delamarre deve ter considerado o tratamento um pouco desproporcional, mas não era absolutamente da conta dele. Contentou-se, então, em fazer uma observação um pouco seca ao capataz, depois recuou, limpou os sapatos no acostamento e entrou de novo no carro
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“Para a plantação”, disse.

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